Juliane
Karla de Oliveira Ataide
Professora de Filosofia e Militante da Articulação de Mulheres Brasileiras -
RN
É inegável que muitos discursos utilizados na condenação da prática do aborto se relacionam, seja o do estado, o das religiões ou de algumas teorias filosóficas. Nas comparações desses discursos nota-se a defesa de uma norma comportamental da sexualidade e do corpo. A prática do aborto de forma legal, ou não, traz consigo implicações éticas e morais que sempre norteiam debates a cerca do que é a vida humana.
Existem várias abordagens possíveis em
torno dessa questão. Sob o ponto de vista social, dialogando com a realidade
das políticas públicas de saúde sexual e reprodutiva e, conseqüentemente, com
os altos índices de mortalidade das mulheres, principalmente pobres e negras,
que acessam com maior freqüência o aborto ilegal e inseguro, nota-se que existe
um recorte racial e de classe tornando todo o processo ainda mais desumano.
A falta de real laicidade do estado brasileiro faz com que muitas vezes ele
cumpra um papel disciplinador
e punitivo no atendimento, gerando constrangimentos e até seqüelas físicas e
emocionais.
Nas religiões cristãs, de forma geral, em especial um setor conservador do catolicismo, que influencia diretamente o Brasil, tanto sob ponto de vista social quanto político, o que se vê é uma “caça as bruxas”, aos movimentos sociais e aos setores mais progressistas da sociedade, assim como às próprias mulheres, que têm, no ato de fazer um aborto, uma tomada de decisão sobre seu próprio corpo e seu destino, por mais que abortar seja, na grande maioria das vezes, uma decisão que implica sofrimentos.
Vemos também na filosofia, principalmente em filósofos cristãos como Tomás de Aquino, a defesa de certa funcionalidade orgânica do corpo e da sexualidade, que nega a possibilidade de experimentações sexuais e da sexualidade que não obedeçam à norma da heterossexualidade e da procriação como condutas morais desejáveis.
Por isso, considera-se que esse debate filosófico e social sobre o aborto, sua moralidade (ou não), suas implicações sociais e culturais tem que ser aprofundado
O discurso do movimento Pró-Vida, que é o principal articulador político e nacionalmente articulado, contrário ao aborto (e) ou a sua legalização, defende a união de estado e religião, acredita que os valores religiosos cristãos devem ser ensinados pelo estado e em nome disso, sustenta, de forma irrestrita, a família tradicional, a gravidez, em qualquer situação, além de ser contrário a união amorosa, civil ou sexual de pessoas do mesmo sexo e de se posicionar totalmente contrário a qualquer pesquisa com embriões, pois essa seria uma manipulação da vida que contraria os poderes divinos.
Há um argumento moralista e biologizante da sexualidade e da vida, muito mais do que um argumento ético, nas defesas contrárias à prática do aborto (e) ou a sua legalização. Ou seja, reflete para além da moral, na forma da sociedade perceber e se relacionar com a sexualidade através das suas relações coletivas e individuais, do ethos do corpo na relação com o outro e a forma como os valores cristãos, referentes a uma categoria religiosa da sociedade, cria valores que julgam e constrangem as pessoas que se compartam fora da norma estabelecida por essa “ideologia” religiosa de intolerância, estabelecendo uma relação moralista e normativa com o outro.
Além da discussão sobre o que significa a Vida, o direito a vida e o direito ou não de abortar e quais as suas implicações éticas e morais, será é necessário um estreito diálogo sobre as implicações desses posicionamentos contrários ao aborto nas vidas das mulheres, para a garantia da vivência ampla e irrestrita dos direitos sexuais e reprodutivos e, e na abordagem social sobre o corpo e a sexualidade, pois se sabe da forte influência que esses discursos exercem nas sociedades, principalmente nos países cristãos como Brasil e como contribuem para o esvaziamento ético do debate sobre o aborto.
Temos que ampliar o discurso para além das defesas morais e religiosas que escondem no seu moralismo cristão a repressão sexual através da defesa (imposição social) de um modelo de família utópico, romântico e nuclear, que tem na sua base a heteronormatividade.
É de fundamental importância discutir sexualidade e o direito ao prazer refletindo o significado de pensar o sexo como um ato de prazer que pode ter na gravidez uma conseqüência e não uma finalidade. Essa interpretação contribui decisivamente para a ampliação do debate sobre sexualidade.
O movimento feminista defende o direito de decisão das mulheres sobre o seu próprio corpo, que o estado laico realmente garanta, para quem quiser, o direito de abortar. Ele compreende que nenhum aborto é confortável de ser realizado, parecendo trazer nesse debate uma proposta muito mais democrática e que dialoga com a realidade do aborto no Brasil, na América Latina e em outras partes do mundo.
Nós feministas, de forma geral, defendemos o direito de viver das mulheres como sujeitas de direitos que não podem ser desrespeitados. Para o feminismo nós não podemos ser desrespeitadas e muito menos expostas a morte por ter engravidado.
O argumento de defesa da vida das mulheres, por parte do movimento feminista e dos direitos humanos não parece está associado a nenhuma moral, mas defende a vida, o direito de continuar vivendo e de ter ou não filhos, construindo, assim, uma defesa ética do direito a sexualidade e ao prazer.
Hoje se tornou uma das principais bandeiras
de luta de todos os movimentos que defendem as liberdades individuais o direito
ao prazer e a liberdade em relação ao corpo e a sexualidade, pois no começo
do século XXI o que se vê é a perda referenciais de liberdade para o corpo.
Fora a massificação comportamental para homens e mulheres, que pese que as mulheres
são muito mais vulneráveis a serem coisificadas, pois na história da humanidade
nós sempre tivemos um valor inferior, seja para ser vendida como escrava, negociada
pelo pai, boicotada nas
universidades e escolas e na vida pública de forma geral.
Os corpos no século XXI estão revestidos
de tecnologia ou eles mesmos são uma “máquina” acelerada e cada vez menos humana.
Será? Por que ao mesmo tempo em que a tecnologia se apropriou dos corpos, e
até certo ponto os manipulou de forma exorbitante, a interpretação mais latente
e defendida ainda para as mulheres é a de procriadora? Esses
questionamentos são importantes para nos mostrar que as mulheres ainda carregam
o estigma de mantedora da vida humana. Fora as complicações em relação ao corpo,
de forma subjetiva, a manutenção da vida social e privada ainda é, “majoritariamente,
de responsabilidade das “fêmeas”.
Os debates que se colocam hoje na sociedade sobre a legalização do aborto ouvem muito pouco nós mulheres, que somos diretamente, as mais interessadas nesse assunto. É de se questionar, como vemos em várias pesquisas sobre aborto, que muitas mulheres que são religiosas e na maioria das vezes contrárias ao aborto, boa parte das vezes o cometa, por algum motivo que só diz respeito a sua experência como mulher.
Não podemos ignorar a negligencia culturalmente construída dos homens em relação à reprodução e as manutenção da vida, o que faz pesar ainda mais sobre as mulheres essa decisão, nem tão pouco banalizar o aborto e deixar que ele se torne um método contraceptivo, porém chegou à hora da sociedade discutir amplamente essa questão. O que não se pode permitir é que, em nome de convicções religiosas, o estado, ou seus executores, negligencie o atendimento as mulheres em situação de abortamento, até nos casos previstos em lei.
É urgente a ampliação desse debate, não só sobre a Vida, quando começa, quando termina, se o aborto é um ato justo ou não, mas principalmente que os argumentos utilizados para a condenação do aborto obedecem a uma ordem mais fundada na defesa de uma opinião sobre a vida do que no controle da sexualidade humana.